Apresentação

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domingo, 20 de junho de 2021

Entre Ásperas



- A senhora já escolheu a cor do esmalte?
- Vamos fazer a unha francesinha. Já usei todas as cores, ao longo da vida. Leir, a minha amiga e exímia podóloga sabia de minhas preferências. Uma pena que tivesse ido para os Estados Unidos! Bem! ... Vamos ver se nós nos entendemos tão bem! Nada de cores!
- Já usou todas as cores, é o modo de dizer, não é? Já usou todas as cores, entre ásperas!
- Entre ásperas? O que vem a ser isso? Não seria entre aspas?
- Entre ásperas! A senhora não sabe o que é? Aqueles rabisquinhos antes das palavras!
Fechei os ouvidos para a reticente explicação do que seria “entre ásperas”, como se sorvesse sabedoria, para que ela me abrisse os olhos para o saber. Preferi confiar mais em minhas aulas antigas de português: “as aspas têm sido usadas, como um sinal gráfico que delimita uma citação, um título de obra, uma denominação, ou para realçar palavras ou expressões em sentido figurado” ... Seria suficiente se eu desse tal explicação à jovem, para elucidar a divergência, mas me calei com a certeza de que nada adiantaria. A manicure dava-me múltiplos exemplos "entre ásperas" e eu voltava às minhas reservadas e intimas reflexões linguísticas: entre esmaltes, lixas, alicates, unhas e dedos; entre considerações e análises eu concluía que a profundidade das explicações da moça sobre “as ásperas” surgiu na oralidade acelerada de um doutor em línguas acompanhada de um gesto com os dedos indicadores fletidos. Eis todos os dedos (das mãos, dos pés, artelhos e joelhos e os seus tendões a serem considerados na possível explicação). Pensei que a manicure poderia ter achado as minhas mãos ásperas, mas logo mudei de ideia, porque as tenho macias e delicadas e ela não entenderia o sarcasmo. Não ousei um comentário. Apenas me perdia nas considerações sobre o tema. Os dedos fletidos estariam ou não cutilados com o carinho que eu desejo ao gracioso idioma? As associações de ideias me arrastaram além do salão, pois eu me sentia entre parêntesis, entre colchetes e chaves, amordaçada e algemada, como uma palavra aprisionada, ou uma sentença matemática em seu cárcere privado. Eu segui minuciosamente o raciocínio frenético da mocinha... E era tamanha a utilização concreta das aspas, ratificada com os gestos dos dedos segurando o estilete, o alicate e a lixa, que tenho ouvido “entre ásperas” corriqueiramente, como em um pesadelo. Claro que isso me leva às raízes da questão com doses de alegoria e bom humor (sem mencionar artrites e artroses, rupturas e fraturas, como cai bem aos satíricos cronistas, como eu). A grafia das aspas se fundamenta nas vírgulas dobradas; mas não caberia a mim dizer isso agora. Deu-se a elas, às aspas, a mímica, a rígida pantomina dos indicadores, apontando ao caminho da elucidação, entre a vizinhança e o circo.
Entre ásperas! Sim! Talvez eu acabasse concordando com a eloquente e teatral jovenzinha com seu alicate cego e sua língua afiada. (Estou admirada da senhora não conhecer entre ásperas! Como pode?) ... Eu também estava admirada! Ásperas, ásperas, ásperas, então vejamos! Dois espinhos da Coroa de Cristo, um de cada lado, a delimitar os domínios da dor que Ele suportou. Entre ásperas! Uma rispidez, um aprisionamento entre palavras que possam trazer a morte e a destruição. Palavras entre ásperas (pessoas, circunstâncias, eventos), entre as duas pequenas farpas gráficas, encilhando com minúcias os sarcasmos, os descuidos ortográficas, as cacofonias, as ironias, os pleonasmos e as invenções. A retórica nos discursos de violência, morte, assassinato, estupro, pedofilia, inveja, rancor, corrupção, aborto, incesto e tantas atrocidades mais, deveriam sempre vir entre ásperas garras da justiça.
Entre ásperas e contundentes medidas para a destruição da engrenagem de todo o mal; duas algemas de aço, para os braços e para os pés. Dois extremos do arame farpado cercando os bois no pasto, e seus olhos melancólicos ao entardecer. Duas garras, duas travas, duas espadas de aço cortantes! Entre ásperas, entre cacos de vidros pontiagudos, cravados no rosto da vítima do final de festa, duas gotas de ácido sulfúrico, a cada canto dos olhos tristes das mães que perdem seus filhos.
Como era bom conversar com a Leir! Volta logo, menina!
Autora: Valéria Áureo
{In: Entre Mentes e Corações}

terça-feira, 6 de outubro de 2020

Sentado só...

 

 


    Quando ele apareceu, causou impacto. Aliás, como ocorrera no passado, com aquela estória da pedra no meio do caminho. Até mesmo os amigos modernistas estranharam aquela pedra. Agora, nada era diferente. Causava estranheza um sujeito sentado eternamente na praia desta cidade onde habito. Não se movia, não falava, não tinha intenção de sair dali (pelo que se percebia em seus olhos pequenos e tranquilos), mas o coração estava cada vez maior, mais acelerado, abraçando a cidade e despertando todos os sentimentos aprisionados do mundo.

 ... Havia um homem sentado em um banco da Avenida Atlântica,  asfixiado, segundo a ligação feita à polícia no 190. Tinha a cabeça coberta por sacos de plástico e estava imóvel. Causava medo e pânico a visão de um homem silenciado, amordaçado no entardecer de Copa. Sem dúvida, a cidade estava cada vez mais assustadora! No outro dia tudo se elucidou:  Carlos Drummond de Andrade estava eternizado em bronze e poesia, em pleno calçadão da Atlântica. Ficará, de hoje em diante,  na praia, dando continuidade ao seu quotidiano prazer de passear calmamente entre tantos desconhecidos, pelo calçadão de Copacabana, no final da tarde. Restará lá, voltado, não para o mar, mas para a calçada, onde possa ver toda gente passando e ouvir muitas, muitas palavras, trazidas pelo vento do mar.... Palavras autônomas, libertadas de seus autores, da voz, do traço, vivas, quentes, frias, perfumadas, plenas, vazias... 

Lá está ele, com toda sua madureza, prevendo os acontecimentos, sem a surpresa do imprevisível. Resta imóvel e pensativo, despertando curiosidade de quem passa. Resta silencioso e solitário e já conhece todos os homens que estão cá fora. Eu cá guardo a rua que é enorme, por onde todos circulam indiferentes às dores dos homens. A primeira emoção que me desperta é o desejo de sentar-me ao seu lado e falar das estrelas.

 Qualquer um de nós, previsível e comum, instintivamente, estaria voltado para o oceano, a contemplar o mar. Ainda mais quando se trata de mineiro. O mineiro fica, mais do que qualquer um, ali por horas, extasiado a contemplar aquele mar imenso, as ondas, o céu, até os olhos se cansarem no infinito e procurarem repouso no verde das montanhas do Forte do Leme. Mas, tratando-se de Drummond, este restará sentado de costas para o mar, resistindo eternamente aos “apelos suicidas das pequenas ilhas” ... Parece que já exauriu toda a beleza da natureza e, satisfeito, só se ocupa com gente, porque delas terá ainda palavras para ouvir... Não resta nada mais para descobrir no mar ou em suas ilhas, mas nos homens, ainda há tudo... Tantas palavras a serem escritas... Ele olha e ouve... Sei que poderia não se tratar mais do olhar malicioso e único, dos garotos que querem ver meninas bronzeadas passando de biquíni, mas do olhar maduro do homem que conhece tudo, que já falou de quase tudo, que já se encantou com tudo, diante das suas retinas fatigadas... Mas não descarto a possibilidade de ele ainda se enternecer com a beleza que passa. Parece que está mais absorto que o de costume. É quase certo estar ainda cismado com o exagero de pernas que vê passar e se pergunta “por que tantas pernas brancas pretas amarelas?” Muitas pernas nas praias, todas tão belas, como eram muitas nos bondes... Não contempla o azul do mar, porque vê os edifícios/ “casas que espiam os homens que correm atrás das mulheres em tardes que deixam para trás o azul” e se fazem vermelhas de tantos desejos. Seus olhos tudo veem na calçada e no entanto “não perguntam nada”. Gastará muito mais que hora pensando num “verso que se encontra aprisionado e vivo” e não quer sair, e por isto, inundado de poema, restará sentado naquele banco, onde o provocam moças e novas palavras que se tornam mais belas.

    Sentado só, expõe ao mundo sua solidão vendida em livrarias, fazendo eterno seu olhar filosófico sobre os acontecimentos, amigos, amor e morte, eternamente preso à vida. Os homens serão presentes, a vida presente e nem ele fugirá para as ilhas, mas restará ali, eternamente, na vida presente.

    Quando ninguém observar seus movimentos, no meio da noite, ele se deslocará calmo e cabisbaixo até a areia e, vergado sob o peso de seus sentimentos, domando mil outras novas palavras, porque tantas delas e tão vivas incomodam o seu eterno sono, escreverá outras poesias. Furtivamente, ocultamente, ousadamente, como fez em seus poemas eróticos, sigilosamente, sem que ninguém se desse conta de sua sensualidade e de sua amada. Escreverá na noite.... Muitas ondas discretas, cúmplices, apagarão os versos que irão morrer no mar. As ondas encobrirão - comparsas - as últimas intimidades do poeta e suas novíssimas palavras...

Sozinho, no escuro, “sem parede para se encostar, sabendo que a noite esfriou, que o dia não veio”, eu o encontrarei, sentado só, preso à vida e às palavras vivas que habitam seus pensamentos e preso ainda a seus companheiros, e ele “não cantará o mundo futuro” ...

Terei acordado no meio da noite, terei perdido o sono e, “sob a glacial idade de uma estela”, me sentarei ao seu lado para lhe fazer companhia, querendo descobrir em que momento as palavras nascem, e se nascem como as estrelas...

Ah! Se eu soubesse como fazê-las nascer, teria largado para trás essa tristeza acre, exalada de um coração enredado em arame farpado, que cerca a minha alma e meu gado. Por não saber como nascem as palavras, nem como vivem, tenho cá um corpo vergado sobre minhas costelas, doído, envelhecido e magro, andando sempre em silêncio e cabisbaixo. Vivo solitário e mudo, por não encontrar as palavras certas para dizer que deixei para trás minha cidade, cercada por montanhas, escondida pedra preciosa esculpida em ventanias, em busca da minha ilusão de ser poeta...

 Paro, interrompo meu silêncio e o dele. Juntos olhamos a cidade e as pessoas que passeiam pelo calçadão no final do dia. Sento-me ao lado do homem que nada diz, mas que me conforta.

Um menino de rua senta-se ao nosso lado. Timidamente contempla a estátua, acaricia longamente o rosto do poeta com seus dedos sujos de graxa, sorri e emocionado afirma: - Parece que ele está vivo, né moça? ...

 Autora: Valéria Áureo

       12/02/2003

quinta-feira, 17 de setembro de 2020

Morro do Pendura Saia

 


Desde que a mãe retomou à casa para criar os filhos, Pingo e a irmã deixaram a casa da avó, indo viver na ladeira do Morro do Pendura Saia, no Rio Comprido. Eram 102 degraus do campinho, do acostamento da ladeira, até a casa grande de Dona Isabel. No quintal havia uma dezena de casas miúdas que ela alugava para gente mais pobre da região. Um cortiço bem organizado. O moleque Pingo vivia na casa da Rua Azevedo Lima, 154, onde podia conviver com pessoas de toda sorte. Não fazia distinção; com a tal idade da inocência nem percebia a diversidade que punha uns aqui, outros ali, na gaveta de índios, brancos, mulatos, amarelos, negros. Para ele era tudo gente, sem lugar no mapa, que tinha uma escadaria para subir e descer várias vezes ao dia. Pingo amava a velha Lurdes, já de sessenta anos, e bem castigada na aparência; ela o cercava de mimos. Mulher rezadeira boa de curar quebrantos. Ao menino deu o nome, prestidigitou o futuro de craque, batizou com nome Pingo, de duas sílabas, porque achava que isto seria de bom agouro, como o nome de Zico, Pelé, Didi, Tostão, e tantos outros. Antes que virasse rapaz já mostrou o mundo feminino, nas suas formas mais claras e expressivas. Sexo tão evidente e natural, das moças subindo a escadaria, sem as roupas de baixo, na nudez dos farrapos e ausência de más intenções; era a pobreza que mostrava os corpos magros, toda vez que elas subiam a escadaria da ladeira. Já que seria um craque, que se acostumasse com as moças e aprendesse a se envolver e se proteger delas.





Nem era mesmo para ele ver, naquela idade, ou para ela apontar para ele aquelas meninas, ou deixá-lo à mercê de tantas pernas que subiam e desciam a ladeira. Ele ainda era menino de dez, doze anos, no máximo, sem esses atrativos do mundo. Era para ele só se ocupar de jogar bola no campinho, lá para baixo de onde morava e ir à escola. Futebol era a sua única chance de mudar a vida e a dela também. Mas a velha Lurdes fazia tudo que o endiabrado pedia. Ela mostrou as meninas, para aliviar a curiosidade do menino a quem carinhosamente chamava “chute de ouro”. E ele se deu por satisfeito com o que viu, convicto de que nasceu macho, assegurando-se de que apreciava mesmo as mulheres.

Havia no meio de tanta gente, uma jovem de certo modo bem atraente. Tinha sido muito bonita, é verdade. Mas agora já mostrava sinais de falta de cuidados... Era outra sorte de gente, a tal Judith, que vivia escondida “provisoriamente” no Pendura Saia. Era o que dizia o empresário “dele”: Fica quietinha aí que a gente vai dar um jeito. Todo mês deposito o suficiente na sua conta, até sair a negociação do passe dele. Tem que ter calma, para não atrapalhar. Judith já vivera em Copacabana, com luxos e popularidade. Transitava livremente no clube dele e ia aos estádios, acompanhando-o bem de perto. Tinha perdido o posto de primeira-dama, trocada no final do campeonato carioca e agora amargava a solidão.  Uma mulher mais jovem tinha ocupado o seu posto no coração dele. Perdida em tantos incompreensíveis dilemas, apontados pelo empresário, uma coisa apenas a preocupa: esperar um filho dele. Isto mesmo, dele... Não podia divulgar seu nome. Era um acordo com os advogados do jogador.

Pela incerteza da moça, esperando ser acolhida no seio da família “dele”, Judith ia cumprindo o que eles exigiam: que guardasse o nome do jogador, longe da especulação dos jornais, das manchetes, para não acabar com a carreira dele e não desvalorizar seu passe. Ainda mais agora, que estava na mira de um time da Espanha. O nome dele ninguém sabia, mas todos sabiam que ela carregava uma barriga que valia ouro. Se ele não se manifestasse, até a criança nascer, era só pedir o DNA e a coisa toda se resolvia. A molecada do futebol sabia da história, mais ou menos, e passou a gritar que ela era uma Maria Chuteira, toda vez que a infeliz passava.  Era como um relâmpago a incendiar o mundo. E no meio de estrondos, palavrões e lágrimas da infeliz surgia o ódio e a depressão no coração de Judith.

- Seu sem-vergonha... Vou picar você a navalha... Quebro a sua perna e não joga mais bola... E partia atrás dos meninos que se espalhavam pelo campinho. Pingo despencava ladeira acima em busca de socorro. Corria querendo alguma ajuda em nome de Deus, que pudesse salvá-lo das mãos armadas da louca.

O tumulto no campinho, a seguir ao caos, tudo silencia no alto do morro. Os gritos e palavrões dela, o choro e o medo dele, a chuva que começa, viram coisa miúda, na extensa escadaria de cento e dois degraus. Lá encima o rosto de Dona Odette, a mãe de Pingo, ilumina a vista do menino, ilumina a visão da mestiça enlouquecida, que vagueia pelas ruelas, como se fosse dia, para ele se salvar.

- Meu Deus, que gritaria é essa? ...

Afogueada, temendo arder em ódio de tamanho desentendimento, a mestiça grita exasperada brandindo no ar a navalha:

- Esse menino endiabrado! ... Esse peste. Toda vez que eu passo, ele e os outros me xingam... Vou cortar ele todinho a navalha... Minha barriga, meu Deus, dói de tanto que corri atrás dele.

Muita coisa fica assim esclarecida no meio daquele alvoroço. Nos dias que ela estava muito bêbada, não se dava conta de que os meninos zombavam dela. Os refinamentos eram possíveis quando estava bêbada: não sabia que a ofendiam, passava pelos meninos sem compreender a algazarra, como se tratasse de uma gentil louvação. Uma saudação cortês era o que sentia e sorridente para eles acenava retribuindo o gesto. Era sim, gentil, quando perdida no álcool e a nada revidava, nem gritava pelas ruas, porque realmente nada compreendia dos palavrões, desde que se soubesse cheia de cachaça. Quando não bebia, modificava-se. Agora lúcida sabia que era ofendida:

- Por isso não preciso de ninguém para me defender. São esses meninos que me xingam... Uns demônios! Judith fica eufórica e chora até ficar rouca. Depois cai exausta, ante a ofensiva da chaleira de água fervente que Dona Odette ameaça jogar sobre seu corpo luzidio, para defender a vida do menino. Exausta de equilibrar a barriga grande sobre as pernas finas e trêmulas; extenuada pelo esforço na escadaria, a louca Judith ainda ameaça, estala a língua, blasfema, cospe no chão a grossa saliva. Finalmente sorri contraditória, enquanto esconde a navalha em arremedos de frouxo soutien, deixando a ameaça de que vai pegar o menino sozinho lá embaixo no campinho de futebol. Na grandiosidade das tormentas e gestos amplos da enlouquecida, o menino sente que nunca mais poderá sair de casa, ou ter paz... Tem sonhos incríveis, abate-se à noite em densos suores e se vê retalhado. Nunca mais voltará ao campinho.

Manhã cedo correndo no outro dia e Dona Odette vai atrás da velha Lurdes benzedeira pedir ajuda. A velha emocionada tenta abraçá-lo, mas o menino está apavorado, depois dos pesadelos com muito sangue e se esquiva para os braços da mãe que conta tudo. Os olhos da velha negra aumentam, se arregalam, as sobrancelhas fazem uma só pergunta:

- Ficou louca, a tal Judith? ... Como se atreve a assustar um menino tão pequeno? ... O meu craque, o meu jogador da seleção?

- Parece que sim, velha. Judith orreu atrás dele com uma navalha...

- A louca bebeu. Com certeza... Melhor ela deixar em paz o meu tesouro e não me apoquentar com suas carraspanas. Ela não teria coragem...

- Agora só bebe de noitinha, ouvi dizer, para conseguir dormir. Esses meninos também não tomam jeito, desafiando uma coitada, uma infeliz daquelas com xingamentos.

- Mas criatura de Deus... É blasfêmia, não é? Meu tesouro não é disso... Nem repete que ele anda na corriola dos “bocas-sujas”. Meu craque não faz isso, não é? ...

O coração de Pingo quase para. A voz pequena de Pingo o defende sem grande convicção e com maiores dúvidas:

- O quê? Eu não xinguei não senhora. Só disse que era puta!

- É pecado, meu menino, voz do demônio, que manda fazer essas coisas ruins.

- Juro que não faço mais...

- Então você se esqueceu dessa vez, não foi? Enganou-se... Não vai fazer mais... O que você falou é nome feio. É coisa do mal.

No vazio do coração amedrontado, no tremor dos dentes, a língua se enrolava e se perdia:

- É tudo verdade, ajudei a gritar que era filha da puta. Eu juro. Não faço mais. Eu não sabia o que era...

      - Vai embora, Dona Odette. E você, meu tesouro, vai com sua mãe... Vou fazer um banho de proteção para se resguardar de todo o mal. Reza bastante, pede perdão e para de atormentar a pobre da Judith. É uma desgraçada, uma infeliz com um filho na barriga, mas vou resolver isso de uma vez. Trate de agir como um homem de verdade!

Odette tratou de se acalmar... Ela defendendo a cria. A velha Lurdes fazendo exorcismos, persignando-se, meio bruxa, meio feiticeira, mas sempre aliada de Deus, pedia que nada atrapalhasse a trajetória do seu campeão, nascido e abençoado para vencer. Pingo saiu apressado prometendo nunca mais ofender a desgraçada... Nem sabia o que era palavrão; era só puta o que dizia... Depois a velha Lurdes suaviza:

- Esquece! Nem fala mais nisso, melhor mesmo deixar de pensar no acontecido e não perder o sono. Abençoo-te em nome de Deus! Agora vai em paz que eu vou resolver. Ela não vai ter coragem de mexer com você. Pode dormir tranquilo.

Dona Odette voltou bem mais calma para casa, arrastando o pequeno pelas mãos...

-Viu só meu filho? É pra isso que tu tens mãe.

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Volta o menino ao ensolarado das ruas; começa seu trabalho de ir tranquilo para a escola e na volta jogar futebol. Vai ao campinho, na base da ladeia do Morro do Pendura Saia. É ali que ele sonha o seu futuro: jogar no Vasco da Gama e depois na Seleção.

Mais um dia em torno do campinho. Alguém grita: lá vem a Judith Navalhada... Maluca! Olá maluca! O pequeno Pingo não entoa mais cantoria nenhuma contra ela; arrependeu-se. Pede para os outros moleques a deixarem em paz. Mas o mundo é tão grande que ela não escuta, porque está bêbada. O alarido parece-lhe uma saudação calorosa de meninos a cortejar a moça magra com risos e cantilenas agradáveis. Ela acena feliz para os meninos. Gosta de todos que a cumprimentam e acenam efusivos. Não sabe distinguir palavras e palavrões.

De noite, hora da sopa na igreja, a pobre Judith encara a benzedeira Lurdes:

- Para com isso, Judith. Já mandei não assustar os meninos. Precisa rezar...

- Sô “mendinga” de rua, mas num minto. Ele me xingou. “Mendinga” de rua. Eu sei que sou, mas não filha da puta, nem puta, que meus “fio” tudo tem pai.

- Filha, faz favor, pega um prato e vai pra fila. Esquece essa história que não tem utilidade. Nunca mais ameace meu menino! ...

Uma ardência sanguínea parece rasgar sua língua ao meio diante do desafio da benzedeira, guardiã do terreiro; intensos vermelhos tingem os olhos que só choram. Na alma de Judith só dor e revolta de ser injustiçada:

- Faço estripulias, vou logo avisando, pico ele todinho na navalha, que não sou filha da puta, nem puta, que isso me dói “nas entranha”...

- Está vendo, minha filha? Não disse que é o demônio? Pede perdão, criatura. Reza. Credo, “tu ta loca!”.

- Por meu filho sagrado. É verdade. Quebro a perna dele. Nunca mais ele faz um gol...

     - Pois trate de ficar longe do meu tesouro, que ele nunca mais vai lhe ofender.

       Os dias seguintes foram um crescente de luta para Judith, ora bêbada e calma, satisfeita com a "saudação" dos meninos; ora sóbria e esbaforida com a sua humilhação, abandonada pelo jogador, pelo empresário, por todos, sofrendo de cansaço e escárnio até que se abateu na beira do campinho de futebol. Depois foi agarrada, socada e chutada por outros mendigos. De repente, sangrou. E tanto sangrou, que na espera da ambulância perdeu os sentidos e um filho que tinha dentro da barriga... O filho dele, o artilheiro, acabou ali mesmo com toda sua esperança!

É uma história triste. Não tem mais filho nenhum; não tem ninguém, nem família. Só os meninos do campinho de futebol se dirigiam a ela, acenando e aquecendo-lhe o coração, quando a pobre coitada estava bêbada; sóbria era só amargura.

- Judith Navalhada, filha da puta! ... Entoavam todos os dias, os meninos da Ladeira do Morro do Pendura Saia, lhe dando boa tarde e ela bêbada acenava feliz retribuindo a cortesia.

quarta-feira, 2 de setembro de 2020

Três Contos de Réis

 




1- Vício:

Ela se queixou, a vida inteira, do incontrolável vício do marido.

- Não suporto, dizia sempre aborrecida! E não se permitia ser beijada.

Extraordinariamente, na quarentena, não teve vergonha ou nojo do cheiro forte de álcool que todos na sala exalavam.

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2- Revelação:

Enamoraram-se. Juraram amor eterno. Em poucos meses foram viver juntos. Só o casamento foi capaz de desmascará-los!

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3- Sedução:

Ele a mirava com grande interesse. Sua maior fantasia era vê-la, finalmente, sem a máscara.

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Autora: Valéria Áureo

sexta-feira, 21 de agosto de 2020

Cantigas de Amor, de Amigo, de Escárnio e Maldizer.



                                                                          Ilustração: Internet



          Interessante como as ideias podem nos levar a viagens distantes. Estou a um passo dos menestréis medievais, em busca de inspiração. O trovadorismo foi a primeira manifestação literária da língua portuguesa, no século XII, com a Cantiga da Ribeirinha, ou Cantiga da Garvaia, em plena Idade Média, período em que Portugal estava em processo de formação nacional. Na lírica medieval, os trovadores eram de origem nobre, que compunham e cantavam, com o acompanhamento de instrumentos musicais, as cantigas (poesias cantadas). Eram poesias satíricas (Cantigas de Maldizer e Cantigas de Escárnio) e líricas (Cantigas de Amor e Cantigas de Amigo).
          Bom, vou levar adiante a minha narrativa, do contrário essa história vai se transformar em uma aula de literatura, e nem todos gostam; voltemos ao fato. O que mais importa nesse momento é o ocorrido há tempos.
Sempre fomos encantados por música na casa 87 da Rua Domingos Inácio; ou nós mesmos nos embalávamos e cantávamos até dormir, ou o som vinha do Clube dos Trinta, em noites de bailes.  Sempre havia um fundo musical nas nossas noites. A música do Clube dos Trinta ecoava atravessando o Bequinho da Zulmira, o quintal de Dona Lulu e as paredes da nossa casa, até nos fazer dormir ritmados pelas notas. Nesse afã de cantar, dançar, pular de alegria, íamos crescendo, sem nos dar conta de que tudo passaria tão depressa. De uma hora para outra a casa tinha mocinhas e rapazes, andando aqui e ali.
          Minha narrativa não tem nada a ver comigo, porque eu ainda me perdia entre livros e bonecas e não era o objeto de nenhum afeto, ou amor escondido. Tão escondido que nem mesmo as moças da casa sabiam. Mas me lembro do fato em uma noite qualquer, do final dos anos 60.
          Noite alta, já beirando a madrugada, ouve-se um violão e a voz melodiosa, de um cantor enamorado fazendo serenata em nossa janela. Era agradável e surpreendente uma melodia tão próxima.  Era a primeira vez que ouvíamos uma serenata. Música lá fora... Em contrapartida havia risos e alegria do lado de dentro da casa.
          Apesar de todos nós gostarmos da cantoria, nenhuma Julieta teria chances de se chegar à janela (o balcão de Shakespeare) para ver quem seria o valente e temerário Romeu. Não com o nosso pai já de pé e atento, movendo-se de um lado para outro, como um leopardo enjaulado, sem acender as luzes, para resolver a situação. A música e o cantor eram acompanhados por um coro de rapazes, amigos com certeza do jovem menestrel apaixonado, naquele desafio considerável de fazer ousada corte a uma das moças da casa 87.
Segue a música atravessando a noite fria do final da década de 60. Silêncio dentro de casa, sob as ordens do pai, e melodia do lado de fora. Tudo ia bem até que...
          Um tiro para o ar.  Dois tiros, três... Uma voz imitando o uivo de um lobo!  Auuuu! ... A música aveludada do menestrel dá lugar a uma correria desesperada, uma gritaria desafinada e outros barulhos: corre, corre, corre! Pega o banquinho! ...
          No outro dia, jogados à porta da casa 87, havia um banquinho e o violão. Quanto ao seresteiro ousado, nunca se soube de quem se tratava. Uma pena, não é? O amor melodioso e fluido foi levado levado pelo vento e tempo...
          Um cantinho, um violão /Esse amor, uma canção /Prá fazer feliz/ A quem se ama... /Muita calma prá pensar /E ter tempo prá sonhar...

Autora : Valéria Áureo
( Conjugando o Amor Líquido)


domingo, 16 de agosto de 2020

Narrativa das Improbabilidades


Ilustração: Internet


Quando a infância era a sua única razão de ser, a criançada já entendia o pai com um simples olhar. Ele baixava os óculos até a ponta do nariz e pronto. Tudo esclarecido e nem mais um som.
Os distúrbios que pudessem existir eram folhas corrigidas do livro de doutrinação que o vento levava rapidamente e dava sabedoria às variadas idades. Dava compreensão. Dava perspicácia, sabedoria e mais discernimento. E ai de quem não compreendesse suas mensagens, pois a vida não dava chance para os tolos.
Poucas palavras, gestos e mímica formavam um código secreto entre eles. A casa poderia até ser um campo concentrado de vontades de guerra, embates, egos, se não houvesse um líder. Mas o líder não deixava que isso acontecesse. Assim seus oito soldados marchavam em harmonia com outras crianças refreadas em casa e nos anos de escola. Tudo ia bem...
O pai falava aos filhos com os olhos e até com silêncios. Palavras deviam ser decifradas com inteligência e rapidez de raciocínio...
E assim se deu a narrativa das improbabilidades: ia ele com a filha adolescente no ônibus até Barbacena, onde a menina estudava; linda, cabelos longos, olhos doces e convicções de menina esperta, mas que ainda tinha que ser protegida pelo pai. No ônibus ela sentou-se no banco da frente e atrás se sentou o pai. Eram os únicos lugares vazios. Do lado dela o banco estava ocupado por um rapaz que logo se engraçou, aprumando-se ao vê-la. Empertigou-se ardiloso e achegou-se aos longos cabelos dela. Animou-se em uma possibilidade de aventura. A cada curva, mais e mais ele se lançava sobre ela. Ela, cada vez mais espremida em seu assento, recolhida em seu temor, sem poder se desvencilhar,  porque não sabia reagir.
O pai, que a tudo vigiava, sabia que não poderia mais agir como sempre agira em sua juventude: um soco nos queixos do malandro e pronto. Mas agora a questão exigia prudência e sabedoria. Precisava esperar o momento certo.
Foi então que o pai exclamou: 
- Minha fia, como estão te tratando lá no leprosário? A frase estaparfúdia era o código para a filha ativar sua imaginação e acompanhar o raciocínio do pai. A menina, atenta e perspicaz, percebendo a intenção do pai respondeu: 
- Estão me tratando bem, pai. Não se preocupe!
- E as feridinhas no seu corpo, já secaram?
- Não, pai, ainda não! ... Tem muitas nos ombros! Quer ver?

Pois nem foi preciso mais nenhuma palavra. O rapaz, que até então estava com a cabeça sobre os ombros da menina, deu um salto; desvencilhou-se pálido, tremendo, apavorado. Deu sinal para o motorista e saltou no meio da estrada. Nunca mais se soube dele.

É isso que acontecia com quem se engraçava com as filhas do meu velho.


Autora: Valéria Áureo
(In: Conjugando o Amor Líquido)

quinta-feira, 13 de agosto de 2020

Na Fila do Pão


                    



Sim, porque não só de pão  vive o homem, mas de todo o verbo, que é carne e cerne do pensamento. Pois, diante de mim conversam dois rapazes e eu atenta, é óbvio, faço minhas considerações, enquanto o pão está no forno. Guilherme e David, ambos de quase trinta anos, não param de falar. Vou além deles e crio a narrativa de minha imaginação:
- Cara, estou vindo do Paraguai; aquilo lá é uma loucura! Estou usando perfume até para vir para a padaria. Chivas, eletrônicos, tênis, tenho de tudo. Voltei cheio de guaranis que aqui valem por... nenhuma. Mas cara, não imagina. E você, tudo bem?
- Estou chegando do ultrassom; é uma menina. Na consulta anterior o médico tinha suspeitado que  era menino. Mandou comprar a chuteira e guardar a nota fiscal. Hoje mandou trocar por uma sapatilha. Julia vem aí!...
- Ah! Então está fazendo hora extra. Vai ver como é. Dureza!
- ´Já estou vendo. Minha mulher e minha sogra querem um mês para comprar o enxoval. E eu vou junto, porque tem que participar. Minhas férias serão...
- Por que não leva para o Paraguai? Entra em um shopping só de roupas de bebê e fica esperando.  Mas, presta atenção: não dá muito palpite não. Tudo o que ela e a mãe escolherem, você diz que está bom. Se contrariar, vai ser uma choradeira danada. Grávida chora à toa. Sogra entra na vibe da filha...  O verbo que mais vai ouvir agora é magoar! E o pessoal do futebol?
- Não voltei mais!
- Machucou a perna?
- Não é isso. Não tenho tempo pra mais nada.  Tem o curso com a doula, todas as quintas...
- O que é isso, doula?
- É a parteira!
-Parteira? Está louco? Sua mulher não vai para a maternidade?
- Vai, mas vai fazer parto humanizado. Eu não sei o que fazer; tenho pavor de sangue. Querem que eu participe...  
- E o outro parto, não é humanizado?
-Sei lá! Estou concordando com tudo. Estou apavorado, isso sim.
-Calma! Tudo vai dar certo. Você se acostuma logo e o bebê vai transformar a sua vida. Se não entrar em pânico, vai adorar.
- Já transformou, cara, já transformou. Já não sou mais o mesmo homem. Ando ansioso, inquieto. Não durmo direito. E esse pão, que não fica pronto, não é? Será que tenho que esperar por tudo?

- Calma... Aprenda a esperar, porque daqui por diante... Pode ser gentil a todo instante, mas sempre haverá uma coisa no seu comportamento que não vai agradar. É assim mesmo. Dormir? Não, esqueça de uma vez! Não vai dormir nunca mais, como antes. A patroa virou mãe. Segura o seu lado highlander e entre suavemente no mundo cor-de-rosa. É melhor andar sem sapatos em casa.

- Então é melhor levar pão doce!

- Vai por mim: leva sonhos!

 

Autora: Valéria Áureo


terça-feira, 11 de agosto de 2020

Emaranhados e intrigas


Ela falava pelos dois, como sempre soube fazer. Na maioria das vezes ela sorria para ele. Ele também sorria, acolhendo-a de volta com alegria. De uns tempos pra cá, ele parecia calado, e ela tagarelava. Ela dava movimento e vida a tudo; dava vazão aos mais íntimos pensamentos com a naturalidade de uma jovem plenamente feliz. Nunca se preocupou em se proteger dos inimigos e nem sabia que eles existiam, embora alguns a alertassem.
Ele sempre tinha expectativas, mas as mantinha discretamente guardadas na tíbia luz do quarto, onde passava a maior parte do tempo. Também sabia como usar as decepções a seu favor. Bastava calar-se! Tão acomodado era na sua calma forma de ser, e na sua confiança nela, a sua querida, que a poltrona o sugava como um redemoinho, fazendo uma moldura de proteção ao corpo desgastado. Tudo se resumia em deixá-la falar o quanto quisesse, para desabafar, para compreender e chorar, para externar seus sentimentos, enquanto ele absorvia o mínimo (aquilo que ele realmente não podia dispensar). Ele calou-se, por completo, em certo tempo da vida. Tudo tinha sido dito e se dava por pacificado em seu espírito. Além do mais, sabia que para ela havia sempre um recurso infalível: em caso de emergência, abra o vidro de calmante (ou quebre), porque ali morava a sua maior segurança.
Ela, por sua vez, jamais permitiria que soubessem que tinham atingido duramente o seu coração e destruído a sua paz de espírito. Como tinham sido covardes! Era notório que o amor dos dois, desde a eternidade, mesmo depois de tantos anos, desencadeava uma grande inveja. Ela sabia-se alvo da invídia e tentava proteger-se dos maledicentes. Usava seu sorriso e sua empatia, para dar o apoio a todos os desequilibrados que desestabilizaram o seu dia e fizeram sua vida um inferno. Isso, de ela dar-se, generosamente aos que a ameaçavam, a ofendiam e a magoavam, os fazia mais humanos, mesmo sendo tão cruéis e diferentes dela. Com resignada bondade ela os transformava em seres humanos, menos animais, a ponto de poder lhes confiar (inocentemente) milhões de dólares. Confiança nos inimigos, escamoteados em amigos, tão sólida quanto o firmamento e a verdade que foram capazes de deturpar, por sordidez, para destruir aquele invejável amor, que nunca poderiam ter.
Ela, erguia-se altiva, caminhando pelo rastro de maledicência, sem se corromper com a maldade. Continuava boa, amigável, inocente, apesar de tudo, apesar de lágrimas, de mãos dadas com ele. Eternamente com ele.
A verdade sob os rumores nunca vieram à tona, mas ela sobreviveu. Ele sobreviveu, no jeito silencioso, e o amor dos dois também foi incorruptível.
Agora, no emaranhado desse amor da idade da compreensão e da maturidade (que ainda desperta inveja), finalmente podia respirar entre alguns poucos amigos que a fizeram melhor e a ajudaram a suportar as dores. Tudo tinha servido para que amadurecesse precocemente.
Um dia ainda escreveriam sobre o seu infortúnio. Os nomes dos danosos e maledicentes algozes dessa trama nunca seriam revelados, mesmo porque sempre se esconderam na penumbra, nos subterrâneos da Deep Web. Nunca se soube dizer quem eram (ou quem são!)

Autora: Valéria Áureo




segunda-feira, 10 de agosto de 2020

Adeus






Agora que estavam tão próximos do fim, mais apegados estavam um ao outro, sentados lado a lado, no pequeno espaço de frente do quintal. Olhavam horas a fio a mangueira e a verdejante videira, fiscalizando cachos de uvas destinados aos netos de fim de ano. No extremo da idade, já tão velhinhos, se assemelhavam a duas crianças de mãos dadas, assentados depois de uma estonteante ciranda. Muito mais eles desejavam o tempo para o recomeço, cada vez que a memória trazia à tona lembranças da infância. Às vezes, passeavam enlaçados pelos dedos no caminho que geminava as duas casas, quando nenhum dos filhos pudesse flagrar aquela ingênua intimidade. Seco e poeirento era o quintal e as folhas da pequena parreira sob o pé de manga, que lhes servia de jardim. Que fossem muito doces as mangas e as uvas, negadas aos passarinhos e acauteladas para cada um dos filhos seus... Também lhes ambicionavam doce destino.
Secos já estavam os olhos espremidos em rendas de rugas que os faziam pequenos, pequenos e melancólicos... À tardinha a escada que levava ao segundo andar servia de bancos para os gatos e os vasos de antúrios. Quando o sol era um pouco menos quente repartiam ali um café que ele preparava para ela, porque era silencioso de palavras o amor que ele lhe tinha. Era feito de pequenos gestos recentes, aprendidos na velhice, quando enfim ele pode descobrir que mais do que as mágoas, tinha sobrevivido um sentimento perene, acobertado vida inteira. 
Viviam juntos havia mais de sessenta anos. Já não se podia dizer que eram duas criaturas, pois que nada sabiam ou podiam um sem o outro; nem pensar, andar, falar, sorrir ou haver o mundo. Ele trabalhara com a luz, sol a sol, noite a noite, fugindo nos desejos e nos sonhos para lugares em que ela não o acompanhava. Costumava evadir-se ao encalço dos lambaris do rio Formoso, porque ali se deixava carregar água abaixo, enquanto desaguava suas dores. Ela cuidara dos filhos, parira quatorze, perdera seis para a natureza, por destino, e também habitara nostalgias que só ela conhecera. Nesse tempo ambos andaram afastados de si, tal a dureza da vida, caminhando cada um o seu caminho. Mas sempre lado a lado, apesar de tudo. Quando ele queria, deitavam-se juntos. Quando não, ela dormia no seu lado da cama, sossegada, enrodilhada constantemente como gato de estimação em borralho. Nunca se separaram. Nem mesmo quando a desavença foi maior, ou quando quase todos partiram. Mesmo os filhos.
Agora, os dois, ali, à beira da tarde, pensavam que mesmo em meio à solidão, a vida podia ser boa e bela. Mas nada falavam, porque já haviam se habituado aos longos silêncios. Ou ele falava, gritava e ela ouvia e silenciava. Longe, apenas o canarinho cantava acima da saudosa gritaria de crianças, que tinham crescido. No mais o silêncio para sempre.
Antes da noite eles dormiam. Um dia e outro e outro e viram passar o tempo como se fosse uma tempestade forte e, até então, se tinham de mãos dadas, quando os filhos não olhavam invadindo essa timidez. Aos poucos souberam que haviam de se deixar. Souberam que, em breve, seria a sua hora. Hora única. De cada um. Que, depois de toda uma vida lado a lado sem quase se falar, seguiriam separados, quando bem o decidisse Deus. Quando pensavam nisso, prometiam se reencontrar...
Mais uma vez, para eles, inúteis eram as palavras, pois se adivinhavam, mutuamente, os pensamentos e o temor de saber quem iria partir primeiro.
Quando a noite caiu e uma imensa lua clareou a terra, se deixaram ficar, mais um pouco, ali fora, povoados pelo sentimento da separação.
Assim que ele se foi, mais silenciosa Wanda ficou... Ela ficou esperando uma lua inteira brilhar nos seus olhos azuis, trazendo-o de volta.

Autora: Valéria Áureo

In: Pretexto Para Tomar Vinho

sexta-feira, 31 de julho de 2020

A Geometria do Amor

Imagem: Internet


Poderíamos pensar que o amor é facilmente decifrável, exato e geométrico. Poderia ser feito de espelhos, linhas curvas e sinuosas dobras dos joelhos; uma sucessão de pontos enigmáticos a se perseguirem nos enlevados toques de ventos no corpo. Poderia ser problemático, matemático, calculável, resolvível, como uma equação de segundo grau. Poderia ser removível como uma nódoa de vinho, decifrável como um mistério, reciclável como papel. Ah! O amor tem muito mais do que os traços e embaraços de muitos fios elétricos enredados pela cidade eletrocutando corações. O amor é pane! Sim, é pânico; “é fogo que arde” ... Lava incandescente descendo morro. O amor pede socorro!
O amor começa com um ponto, dois, três, reticentes e, ao se darem conta, duas almas embriagadas correm tangenciando o infinito. Dois pontos extremos extrapolam o desenho só para se encontrarem e, ao se verem, um grito! Ah! Afinal! Um beijo. Fugaz abandono do plano exato, do fino traço arquitetônico e, então enamorados, dois rabiscos assumem forma, volume e se compõem no sólido e no insólito. Ocupam finalmente o espaço. Dúvidas e, também desastres; outros pontos desconectados perseguem os dois pontos amantes e afins, outrora felizes, ora ameaçados por mais um ponto fraco e invejoso, que interfere nessa dualidade monolítica e consagrada. O que era para ser um projeto (de vida) de duas forças iguais, em um esboço equilátero, equidistante, equivalente, na perspectiva de um afetuoso milênio, passa a ser, miseravelmente, para os dois, um triângulo desengonçado, esquizoide e neurastênico. Ah! A geometria do amor...

Autora: Valéria Áureo
In: Entre Mentes e Corações
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